quinta-feira, 3 de abril de 2014

Carta à minha melancolia

Melancolia:

Pensei bastante antes de te escrever esta carta, que perde o estatuto só por ser remetida a algo que não existe. Quer dizer: existes, mas a tua existência é apenas condicional e a tua condição não te permite ler palavras, ora o teu desejo compulsivo de devorar pensamentos.

O que te quero dizer é que estou doente contigo e que, embora não repares em muita coisa a ti adjacente, me estás a consumir tão ferozmente quanto um lobo faminto devora a sua presa outrora fugitiva. A tua negra podridão destrói-me a vida porque ao me fazeres deambular entre pensamentos depressivos e melodramáticos - estes cuja origem permanece ao longo do tempo um mistério indecifrável para mim, que tenho uma vida agradável segundo os que a especulam - generalizas os detalhes, as pequenas coisas: torna-las carrascos do quotidiano que não me deixam ver que a simplicidade também tem lugar no mundo.

Frequentemente me deparas com a virtual corrida ante a janela aberta do oitavo andar de um prédio qualquer com a finalidade de concretizar um mergulho de cabeça em direcção ao pavimento de betão. Mas eu tento, por via da vã racionalização, explicar-te que tal acção soltaria lágrimas demasiado pesadas para o mundo aguentar. Que a pintura no chão resultante não seria obra de arte nenhuma: apenas o escarlate que o acaso se encarregaria de distribuir pelo espaço bidimensional que aparou a minha queda. Que mais tarde viria um homem limpar tudo para mal da sua sorte e que a culpa disso era toda minha! Há demasiada sujidade num inocente salto: há demasiada complicação no simples instantâneo.

Mas não penses que a minha doença resulta da tua doutrina derrotista. Não penses que todos estes teus entraves servem como modi operandi do meu organismo vital: das consequências físicas daquilo que me toca no pensamento. Viver contigo na consistência do tempo, nas decisões diárias e concretas da vida, tornou-me somente aquele que olha para o seu interior com desconfiança; sabendo que ele próprio construiu um inimigo fatal. Por isso, Melancolia, me referi nesta carta a ti e ao outro que a consciência construíste - mas que não sou eu.

Mens agitat molem.

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