quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Tempo

A fúria incessante do relógio,
máquina histérica e indefinida,
agride fisicamente minha alma,
motivo de existência corpórea.

Aqueles ponteiros de seta
sanguinária, arremessos de
um guerreiro invencível,
esmagam o coração perdido

dos que perdem a corrida
fatalmente definida
pela condição de sofrer.

Pára, tempo, é hora.
Deixa a angústia desaparecer.
Vai-te por fim embora.

domingo, 18 de agosto de 2013

Soneto já antigo - Álvaro de Campos


Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás-de
Dizer aos meus amigos aí de Londres,
Embora não o sintas, que tu escondes
A grande dor da minha morte. Irás de

Londres p’ra York, onde nasceste (dizes…
Que eu nada que tu digas acredito),
Contar àquele pobre rapazito
Que me deu tantas horas tão felizes,

Embora não o saibas, que morri…
Mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
Nada se importará… Depois vai dar

A notícia a essa estranha Cecily
Que acreditava que eu seria grande…
Raios partam a vida e quem lá ande!


Ouvir declamação de Luís Gaspar

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Quem és tu que em mim apoias o olhar?
Juntas no colo sentado flores que lembram rosas,
mas não são rosas as flores que juntas no colo sentado.
Distas de mim quatro passos largos,
dados no soalho limpo de madeira importada.
A cadeira baloiça fugazmente, ficando parada
onde mais certa é a luz que lhe incide.
Tal luz, focada na figura que em mim apoia o olhar,
faz sombra a restante sala e apaga tudo o que não vejo.
Tal vermelhão em teu regaço lembra-me que olho a rosas,
tão únicas que se fossem outras flores não seriam rosas.
Tal momento faz a vida ficar eminente ao olhar perdido
em que me olhas, em que te olho, onde estás, afastada
de mim, baloiçando, na luz que te faz tudo no nada da sala.

sábado, 3 de agosto de 2013

Gato - Pablo Neruda

Que bonito é um gato que dorme,
dormir com as pernas e peso,
dorme com suas unhas cruéis
e seu sangue sanguinário,
dorme com todos os anéis
que como círculos queimados
constroem uma geologia
de uma cola cor de areia.
Queria dormir como um gato
com todos os pêlos do tempo,
com uma lígua de siléx,
com o sexo seco de fogo
e depois não falar com ninguém,
deitar-me sobre todo o mundo
sobre as telhas e terra
intensamente concentrado
em caçar as ratas no sono.
Eu vi como ondula o gato dormindo: correndo na
noite, no escuro, como água,
E às vezes eles cairiam,
talvez se enrolasse
nu em montes de neve,
cresce talvez dormindo
como um tigre bisavô
e salta para a escuridão
telhados, nuvens e vulcões.
Dorme, dorme gato noturno
com cerimónias de bispo,
o teu bigode de pedra:
ordena todos os nossos sonhos,
dirige a escuridão
das nossa proezas sonhadas
com o teu coração sanguinário
e largo pescoço e longa cauda.
Pablo Neruda