sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

O dia que sucede o dia de Natal II

O Natal passou ontem
E hoje é dia de trabalho.
Com as prendas contem
Mais tristeza no baralho.

Minto: não há prendas.
A vida é o nosso terror.
Há somente as lendas
Muito cheias de amor.

Ao terceiro dia acaba
Tudo o que começou.
As promessas são nada,
Mas isso nem eu sou.

Fiquem felizes no Natal:
Não há mesas sem comer
Pois todos têm a tal
Ganância por receber.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Este belo Natal

Numa gélida e natalícia rua, sozinho, um menino procura uma específica loja por lá aberta. Entra numa com guloseimas de montra convidativas e brinquedos coloridos ao fundo sem sequer reparar que passou da rua fria à loja de confortável temperatura. Esse desejo extra-físico e corporal que cegamente o fez ver os artigos que o Natal fizera chegar àquele estabelecimento, que denota já sobre as suas paredes e demais estruturas idade pesada, explicava-se pela idade tenra e juvenil das suas pernas, que o apressaram até à prateleira mais afastada. Automático, o rapazito alcança uma caixa de madeira antiga com alguma inconveniente poeira - pelo sopro forte extinta - e com dois bonecos nela desenhados: um pai-natal acompanhado por um pequeno e prestável gnomo. Sem dúvida que o invólucro que segurava fazia parte do século precedente ao do nascimento do nosso protagonista, mas, com mais certeza ainda, ele reconhecia o grafismo: de onde? não sabia. Mas conhecia-o e jurava-o mentalmente. O que teria provocado aquele instinto que o fez alcançar a inexplicável e desejada caixa de madeira? Não sabia, mas tinha a certeza que algo de mágico, que só a alegria e a unicidade do Natal conseguiria explicar, se encontrava no seu interior.

Num improvável dia sem clientes, o dono da loja, sentado em parte sobre uma cadeira e em parte sobre a idade, sossegadamente lia um livro muito antigo. Naquela época era costume a loja ter clientela de sobra, sobretudo de pessoas já antigas como o livro e o dono, que procuravam as coisas que as faziam sonhar nos Natais longínquos das suas infâncias. Com estranheza, quem entra é um menino, que sem ver nada do exposto - excepto, com um olhar vago, os chocolates à entrada - se penetra rapidamente na parte mais afastada da loja, agarrando a dita caixa de madeira de indecifrável conteúdo. Surpreso com este acontecimento inesperado, diz o velho dono:

- Raios te partam, Joãozinho, o que vieste aqui fazer com este frio? A tua mãe não pode ir às compras sossegada que a desobedeces logo e sais de casa!
- Desculpa lá avô, vim só buscar os comandos da consola. Podes vender a caixa, eu é que já não sabia do raio dos comandos. Só agora é que me lembrei que era aqui que os guardava.
- Muito bem, vê lá se tens juízo a voltar para casa. Como está a ser o Natal, já agora?
- Bom, farto-me de jogar Grand Theft Auto 5™ e Watch Dogs™ na Playstation 4™ da Sony®.
- Está bem, vá. Juizinho.
- Adeusinho, avô. Feliz Natal.
- Dá um beijinho à tua mãe.

E a caixa, que simboliza tão claramente o espírito de Natal que aproxima distantes gerações, foi vendida a um transeunte daquela rua que a conseguiu por dois euros e meio somente depois de regatear um pouco.

Feliz Natal a todos os dois leitores do Vou Escrever Um Blogue, e que 2015 seja melhor do que a maioria dos anos do século dezassete.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Poesia

Meu amor: como o tempo de saudade
Escorre lacrimosamente por meu rosto.

Nem a prata da casa ou o ouro da igreja,
Nem o amo sorridente ou a serviçal
Mulher-a-dias que aqui emprego,
Nem eles, nem nada, nem ninguém,
Te repõem em minha vida que era nossa.

Como a bravura do campo ou a ternura
Das mães que lá habitam com suas famílias,
Também tu, para a natureza vinda, da fama
Retornada, me dás a chama de mil valentes
Gregos e de um milhão de dons Quixotescos.

Acaba-me a poesia quando no pensamento
Me acabas e não voltas senão amanhã.
Mas não te extingues e isso é bom.
Nunca te extingues que és fogo
E o que me faz escrever.
Mas não sorrio.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Carolina

O segredo dactilografado no vento
Vem breve pela oração do amor.
Não o desvendas que ele vem lento:
Espera e não deixes chegar a dor.

Alguém me disse que há vida
Naquilo que és; naquilo que fazes
Nasce a dúvida pelo tempo trazida.
A incerteza sempre cala os audazes.

Viste o mundo que não era nosso,
Abriste o tempo e entrelaçaste-o;
És abrupta quando, de modo grosso,

Não deixas viver os outros em ritmo.
Não vivas opaca como a neblina
E vê quem pelo espanto te encanta.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Talvez se pudéssemos permanecer neste estado inerte enquanto o tempo não passa

O que se há-de fazer quando ninguém aparece no espaço de arte que abriu na noite anterior? Porventura o desconhecimento do artista configure o deserto local, ou a ambiguidade da arte que o preenche, ou qualquer outra coisa que se pudesse confiar às descrições inerentes ao acontecimento.

Não se fará nada porque tudo vai passar enquanto ninguém passa; e a essa conclusão há já o artista chegado numa instância ante-visionária. Quando ele foi para a frente com o projecto já tinha o conhecimento que aqueles metros quadrados seriam um caixote do lixo de dinheiro e que quem a infelicidade de os visitar tivesse seria considerado um cabeça-oca da cultura. Ele não tinha quem o aconselhasse do que seria melhor e sozinho percorreu o caminho que tinha a percorrer, não fosse incomodar alguém desnecessariamente.

Mas a consequência - pelo artista designada "reacção" à sua arte - será a de não acabarem naquela cidade os movimentos artistas independentes, sem -ismos ou enfeites. Ele é arte e sabe-o.
Um dia morrerá e todos abrirão os olhos. Talvez se pudéssemos permanecer neste estado inerte enquanto o tempo não passa, ninguém sairia ferido, tal efeito devastador da necessidade de haver movimento de qualquer espécie.

sábado, 29 de novembro de 2014

Na mão esquerda uma flor

Na mão esquerda uma flor
Que secou há algum tempo;
Na direita, o árduo rancor
Da secura que leva o vento.

No cimo da antiga cidade,
Anciã ao ensino académico,
Passa o tempo e fica tarde.
O amor torna-se epidémico

E quando a noite torna fria
A oferta de nós os dois,
Veremos o saudoso rio

Com a vida que vem depois.
Meu amor, encantada pessoa,
Não largues a flor que ela voa.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Beatriz

A ténue silhueta delgada,
Fugaz a quem a alcança,
Foge de quem em nada
Lhe dá mais esperança.

Serás para sempre criança,
Mas enquanto esperas
Amarga tua final dança,
Temo-te como mil feras.

Enfim o sol se descobre
E a lua despida se esconde.
Para que o amor sobre,
Beatriz, algo será nobre.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Adolescentes vagas cujos seios são facilmente acedidos

De botão em botão,
Com a sua lentidão,
Nua fica, perdida
E friamente despida.

Sua alma é oca,
Seu espírito presente.
E quanto à voz rouca,
Essa já não a sente.

(Mais sujo é um poema
Que liberta o que nada
Tem de errado. Só tarda
Para que nada tema.)

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Ana

'Ana', disse em resposta à análoga questão.
De simples mas astuta contemplação,
Esse nome que a define e desvende
Ao mínimo reduto da vulgaridade,
Por conseguinte Maria a entende.

'Ana', lembro eu com fugaz saudade.
A virtude versifica a pressa enquanto
Suas coxas definidas e magníficas,
Um tanto sensuais, um quanto refúgios,
Se visualizaram alheias à mundanidade.

E enquanto houver paz no mundo,
Haverá Anas por aí, para louvar.
Serão Marias, mas sem acabar.

(Deixei por Ana o sufixo perfeito,
O qual de resto toma por defeito
Essa tal Mariana, Diana e Joana.)

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Hipócrates

No teu reino de animalescas feituras,
Aguardando negra e apática esperança,
Vai-se revelando, embora triste, a dança
Redonda de corporais e emocionais leituras.

Por julgares feliz, com obras de intemporal
Significação, solenemente serás o general
Incansável da medicinal e hipotética geração.
Teu julgo veio. Cristo morreu: não houve sanção.

As funções médicas ao teu dispor, combinadas
Com glórias e poder biológico independente,
Na Vida e na Morte, ambas a Hades confiadas,

São utensílio útil para um mundo decadente.
Por ser assim, e não o oposto, és deste Humano
Terreno pai, grego Hipócrates pré-Romano.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Somos vagos

Somos vagos:
Vazios e crassos;
Amplos lagos
De vileza e fracassos.

Outrora magníficos,
Definhamos as conclusões.
Aguardamos pacíficos
O nada das situações.

Falta ânimo,
Vida e certezas.
Lá no cimo
Ofuscam realezas.

Somos máquinas
De cabeça invertida.
Esta vida apenas
Não nos dá Vida.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Passeando

Vinha num passeio abaixo,
Caminhando distraída,
A saudade de não querer nada.
Caminhando porque não chega;
Distraída porque já me apanhou.

Quando vens ao mundo, Vida,
Esperas a tua vizinha sombria.
Mas, por ninguém a desejar,
Nunca chega essa fatal
Consequência de existires.

Apenas garantes a calçada
Bem preparada, sem percalços
De construção, pronta a receber
O passeio último de saber o
Que na vida se quer.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

"Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo."

'Quando' é um mar com ondas a chegar:
Como todos os mares que comem as questões.
'Onde' é a explicação catártica que ousa
Perguntar se há coisa diferente de outra.

     Sentinela e à porta, não temo quem lá vem.
     Senti nela nada mais que ela estar a mais.
     Trouxe exércitos e eu recolhido, atento
     Mas adormecido, sei que nunca hemos chegar.

O que faço aqui, nesta hora infausta?
'Já viste a sorte que tens? Estima-a.'
A Literatura nem sequer me vem.
Qual amor tão unilateralmente passivo.
Mais do que nada, é Fernando Pessoa.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Bailado de Outubro

Tique-taque.
Um, dois, três, quatro.
Tempo.

Uma fantasia aberta
No obscuro salão
Faz-me ficar alerta.
As moças são
Ágeis e melhores
Que modelos.
Cobertas em suores;
Com curtos cabelos.
Marcam o espaço
E nunca se cansam.
Na testa um laço
E alegres dançam.

Fosse a vida
Desembainhada
Tal como é bailada.
Fosse o tempo
Tão ilimitado
Quanto o espaço.
Fosse posição
De dança
Tudo o que cansa.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Bíblia

Leu-se a bíblia e assim ficou.
Uma peça de literatura originou
Coisas demasiadas. Os homens
Perderam-se e consomem-se
Afirmando entenderem o ideal
Abstracto daquela obra radial.

Li Caim e o Evangelho de Saramago.
(Ou fingi que li - como se lê a Bíblia
De todos nós e de Deus de nós todos.)
As dúvidas que aqui embargo
São falsas como o Gesto Amargo
De Deus Todo-Poderoso-Assim-Assim.
Não é necessário medo ou instituição.
Recuso viver angustiado - assistindo
A textos escritos que nada são.

Ora as pessoas? Fazem-me sorrir
Porque não vejo nada nelas diferente.
Nada me faz Deus, ou outro, sentir.
Mas as pessoas fazem-me contente.
Sim - as pessoas de uma Religião.
Elas são todas iguais. Não são?

Creio nelas. Creio que se há Deus,
Nada em que eu acredite lhe importará.
Mas não há deus pela oposição
De ideias entre povos e comunidades.
Há deus naquelas coisas da bondade.
Há uma entidade divina em cada esquina:
Espreitei e vi-a, de relance, até me esconder.
Há gente cheia de fé - tanta que até chateia.
Mas há outras que - Deus me venha negar -
Pouco querem saber, de tanto adorar.

A Religião é tudo isto e nada mais.
A missão é saber o que comer agora;
Cuidar de quem precisa e jamais
Praticar o mal. Quem isto demora
A enxergar por estar cego com uma
Religião - meus irmãos - haja inferno
Para eles que não chegam ao Inverno.

Leu-se a Bíblia e ficou assim.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Como de costume, tenho dificuldade em rematar um título

Invente uma história.
Verá que o empurrão
Inicial será escória
Ao receber seu quinhão.

Por vezes tudo parece
Uma fantasia encadeada:
O recheio belo acontece
E ideias surgem do nada.

Dê luta ao pensamento.
Se agora, neste momento,
Não lhe vem o começo,
Escreva o fim como adereço.

Se calhar a metafísica
Supera a lógica final.
Alguma superlativa dica
Me retira a vida radical.

Leia mais que isso é bom
Para inverter a inspiração.
Algo simples - um som -
O fará escrever uma canção.

Cantar os feitos Lusos
E papagueá-lo mais tarde,
Num século consciente,
Serve só aos de boa mente.

Mas eu sonho e desbasto
Este futuro que nunca é.
O que será? - perdi-lhe o rasto.
Porra, que Futuro posto de ré.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Poema curto e simbólico

Pequenos actos de vileza
Indexados ao extremo,
E sempre cheios de certeza,
Dão sofrimento terreno.

Aos pais, e filhos de idade,
Dura é a ternura a receber.
Enlaçados, isentam quantidade.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Sozinho vou, meu amo

Sozinho vou, meu amo,
Para onde me levarem
As coisas que, quando
Não se vêem, se sentem.

Serviste-me em hora
Vaga e inexistente.
Tiveste tempo de sobra
E nem esse trouxe gente.

Sozinho nascer me viste.
Contigo de vigia fiquei.
Com a tua vida triste
Ainda não me deparei.

Ensina-me as canções
Da vida, e da morte:
Esta que nos Verões
Espera quem tem sorte.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Dona Henriqueta que cuida dos efémeros

Dona Henriqueta: faça o favor de chegar aqui.
Ao meu colo encontra um envelope, selado
E com um conteúdo escrito especialmente para si.
Quero que regue as flores que estão aqui ao lado.

Estou a morrer e, sabe Dona Henriqueta santa,
Nesta cama final só há dúvidas e arrependimentos.
Tenho pena de ser eu assim. Tenho frio: dê-me a manta.
Vivi, amei e chorei. Na falta de mais, tenho esses momentos.

Vi tudo o que o mundo me quis à vista mostrar.
Senti a brisa fina e a doirada manhã sem lhes tocar.
Sorri sempre para si ao dar-lhe estas cartas
Que, agora no fim, não vale nada atirar as setas.

Mas você, tenra Dona Henriqueta assistente,
Tanta vida viu partir que nem enxergou a sua a acusar.
Abra o olhar que ao seu redor nada a está a enganar.
Somente você, jovem Henriqueta, vive a vida intermitente.

Cuida de nós, efémeros, e vê-nos como gente.
Em si há bondade, consigo-o ver claramente -
Mas a bondade apenas redunda em coisa nenhuma.
Cuide de si, ajude os outros: seja feliz, em suma.

sábado, 2 de agosto de 2014

Calem-se os sonhos

Calem-se os sonhos
Que gritam "É HOJE!".
Guardem a força
E voem para longe.

Aqui ninguém vos ouve.
Aqui ninguém ouve ninguém;
Aliás: aqui nunca houve
Quem quisesse ver além.

Velhos conservadores
(Cheios de cegueira reveladora)
Nomeiam com horrores
Os sonhos proibidos.

Esses últimos, nos idos
De quem jura a mentira,
Abrem a vida de quem
A vida aos outros tira.

Gritem. Soem eroticamente
Aos ouvidos desses velhos.
Perversos como são,
No final, enfim, morrerão.

domingo, 27 de julho de 2014

Amor & Morte (não necessariamente por essa ordem)

Embora a sombra esfrie
Quando a inútil alma lhe tocar,
Não serão em vão todos
Os suplícios que Deus fez chegar.

Arderão erroneamente vis acções;
Mas quem ao longe viu cometer
Nefastas e perigosas afirmações
Não se cometeu à graça de as parar.

Agora o amor é falado
Enquanto a morte paralela assiste.
Vê-los-emos chegar pela calada.
A ambos nada resiste.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Meeting

The soul began its eternal path.
As I walk into the empty room
That is my heart, I see the center
That's full of roses in it.

A lifeless man lies there
And his bloody corpse
Fill the the entire floor in red.

I couldn't stand one minute
Alone with the dark roses
fading to the dripping blood;
So I ran outside.

Standing in the narrow way
was another man, blocking me:
not letting me get away.

As I look upon his face,
I came to recon myself.
There I was, living in the death.
Trying hopelessly to fight
that one figure who for once
stood firmly.

Then there was
blood in my face.

sábado, 12 de julho de 2014

Poema tão aleatório quanto a sorte

Eu quero é passar bem
Contigo ou com quem
Me faça lembrar
O que me levou a amar.

Não preciso de nada.
O que tenho sou eu:
E sei que na estrada
Não verei gesto teu.

No final te ficará
O sorriso de quem
Encontrou alguém
A quem decerto amará.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Densidade bucólica

A beleza sábia do teu rosto
A olhar descalça a paisagem
Que penetra verdejante a janela.
O vestido curto que deixa
Ver a pele lisa das tuas
Longas pernas, com alças
Vincadas em teus ombros firmes.
O constante descanso que
Provocas sentada nesse
Banquinho posto naturalmente
Com a graça de poderes
Ver lá fora quem passa.
O sorriso amável com o qual
Contagias o velho que vai
Passando, lento, de bicicleta.

Sorrisos, dizem, há muitos.
Mas quando me tocas,
Ou eu sinto tu tocares-me,
Vem-me ao rosto um sorriso
Que não é meu.
É teu.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Ah, pá! Um poema d'amor!

Olha, amor: se te importares com
A tua vida faz com que a dos outros
Valha tanto a pena como a nossa.

Verás a luz das estrelas apagar
O vazio da tua paisagem mental.
(Que é mais bela que a Natureza.)

Mudarás de sítio quando a cidade
Onde habitamos se transformar
Na cidade onde sempre habitámos.

E aquelas coisas más que tanto
Nos atormentam por sermos gente,
Verás, serão a base do nosso amor.


quarta-feira, 25 de junho de 2014

Científico-humanístico

Suspiro intermitentemente
Com a ciência que existe
Nesta lamentável mente.
Que alma decadente e triste.

No interior do que sou
Defino-me como me vejo.
Ontem alguém me olhou
E viu tudo o que invejo.

Já não me sinto em mim.
Sou o que tiver de ser.
Nunca me acharei ruím

Enquanto estiver a viver.
Enfim: a maior humanidade
É estudar Ciência de verdade.

domingo, 8 de junho de 2014

Desumanidade

Não procures a humanidade das pessoas.
Estas voltas que se dão todos os dias
Para voltar a iniciar tudo outra vez?
Os ódios provocados pela falta de
Amor que por ser humano não se entende?

Chega de quereres ser humano.
Chega de te contentares com a vida.
Que pretendes de uma coisa que todos têm?
(Mas será que têm mesmo?...)

Desumaniza-te. Encobre os sentimentos
Com letras e palavras e frases.
Escreve para te sentires confuso.

É humano virem coisas ao pensamento,
Mas arremeda isso materializando-o.

(Se calhar a vida é chorar tinta...)

terça-feira, 3 de junho de 2014

Mata-te

Quando estás morto ninguém quer saber se estás morto.
Enquanto vives sentirás a vida a passar; os dias a ficar atrás
Da solidão perpetuada pelos que outrora estiveram contigo.
Vives e não tens vida; achas a morte e pedes para recomeçar.
Mas pensas que é por acabares que outrora começaste?
Nada é perpétuo na finita contagem do extenso Cosmos.
Não és nada: nem poeira nem matéria nem entulhada negação.

Afim de morreres há quem se enlute e sofra infinitamente.
Não fazes bem nenhum a ninguém. Vive e morrererás.

sábado, 31 de maio de 2014

31 de Maio

Admiro quem diz que a 31 de Maio se principia o 1 de Junho. Quem ousa dizer que a finalização de algo é o começo da sua consequência tem mais coragem que todos os navegadores quinhentistas portugueses - quais pensadores inverbalizados da mesma ideologia. Pela manhã será Junho. Junho por inteiro. Todos os bocadinhos que fazem o mês aparecerão finalmente pela manhã. Maio, pela nulidade de se haver transformado no conseguinte mês, cessará a sua actividade temporal esta noite. Qualquer ser óbvio, por existir, considerará isto na sua simples e inerte privilegiada posição de assistência passageira do tempo.
Mas nunca ninguém pensa que por começar Junho também começa Agosto. Ninguém repara que pela manhã será Maio novamente, indefinidamente.

Depressa e devagar também são advérbios de modo.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Negação compulsiva da existência divina

Não há nada que nos faça existir excepto a nossa realidade corpórea e material que fisicamente ocupamos. Aquela energia - diferenças de potenciais em células do cérebro - a que chamamos pensamento, essa mesmo, nada mais é que organização grotesca e temporal de electrões que, para fortuna de uns e miséria de outros, não pode ser controlada. Apenas aparece vinda de causas genéticas, biológicas e naturais - quais combinações aleatórias. Todo esse esforço metafísico, estético e deontológico que causa movimento na nossa vida é em vão. Todos os trabalhos musculares e consequências de acções físicas serão um dia trabalhos musculares e suas causas. As partículas não têm um arranjo especial. Tudo vem das estrelas através de reacções nucleares. Antes disso a nossa compreensão cede.

Não há Deus nem Universo. Ninguém nos destina a nada e estamos todos destinados perante as condições iniciais que levaram a cabo a nossa vida. Nego portanto entidades divinas e todas as ideologias que existem no mundo. São todas morte e passatempos. O conforto da fé é uma ilusão temporária. A compreensão da ciência não leva a lado nenhum. A inovação tecnológica nunca inovará. A política é religião e sexo. A poesia não é arte e a arte é coisíssima nenhuma.

Van Gogh disse um dia que todas as pessoas do mundo são reduções de pinturas a que chamamos memórias. Mas Van Gogh nunca disse nada disso porque está morto e antes de morrer era maluco como todas as pessoas do mundo. Não existe História. Tudo o que se disser hoje será destruído amanhã e ontem ninguém cá estava para ver. Não há morte no mundo porque o mundo é morte perpétua. Se ninguém morresse ninguém vivia. Se aquele indiferente sofredor na esquina vasculhando o nauseante caixote do lixo não fosse aquele indiferente sofredor naquele momento, todas as pessoas do mundo seriam tão felizes quanto ele.

sábado, 17 de maio de 2014

Combinações

Não acredito em poetas.
Não são leais a um ideal.
Sim, sabem falar destas
Coisas assentes na actual
Solidão que escrevem.
Mas só sabem narrar...
Se sozinhos se envolvem
Com a arte de criar,
Então lhes tirem a pessoa,
Que nada lhes vem à toa.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Estudo artístico da concepção humana

Em puras lágrimas, o imundo novo humano escorrega pela origem do descontrolo carnal, qual berço da eterna renovação. Chora descontroladamente a inebriada matéria embrionária, que aprende pelo conforto dos braços que o recebem em sorrisos dolorosos o que é ser, agora, humano. Ela está morta. Ele condenado está. Mas ambos vivem enquanto dura a ficção temporal da vida.
Se lhe querem dar significação, que sentido de função será mais real do que este?

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Soneto do que nós somos

As flores são elementos
que, pela Natureza ditadas
as cores e as olfactadas
substâncias, nas estradas
bifurcadas das Escolhas,
já hão sido separadas.
Há-as com pétalas trolhas
e aquelas definidas pelo
suporte terreno paralelo
a ficarem rasas ao Caminho.

Embora me seja o ninho
do Tempo apresentado
na condição do actual estado,
há em mim a multitude da Vida.

domingo, 27 de abril de 2014

Créditos

Realizador:
Homem

Produtor executivo:
Sonho

Produtor #1:
Sucesso

Produtor #2:
Auto-realização

Actor principal:
Antecipação

Actor secundário:
Acaso

Participação especial:
Sorte

Director de Casting:
Geração

Compositor artístico:
Natureza

Editor:
Presente

Argumentista:
Destino

Agradecimento especial:
Morte

domingo, 13 de abril de 2014

Os agudos da vida

Há que haver Motivo.
Caso contrário, dizem,
Não há motivo para
Haver vida viva,
Que a vida morta
Assemelha-se à
Morte-ela-própria.

Por isso, quer haja
Motivo para motivar
A vida a ser vivida
Ou quer haja vida
Para, na consequência,
não ser motivada a morte,
Haverá sempre vida
Enquanto não houver
Para sempre morte.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Carta à minha melancolia

Melancolia:

Pensei bastante antes de te escrever esta carta, que perde o estatuto só por ser remetida a algo que não existe. Quer dizer: existes, mas a tua existência é apenas condicional e a tua condição não te permite ler palavras, ora o teu desejo compulsivo de devorar pensamentos.

O que te quero dizer é que estou doente contigo e que, embora não repares em muita coisa a ti adjacente, me estás a consumir tão ferozmente quanto um lobo faminto devora a sua presa outrora fugitiva. A tua negra podridão destrói-me a vida porque ao me fazeres deambular entre pensamentos depressivos e melodramáticos - estes cuja origem permanece ao longo do tempo um mistério indecifrável para mim, que tenho uma vida agradável segundo os que a especulam - generalizas os detalhes, as pequenas coisas: torna-las carrascos do quotidiano que não me deixam ver que a simplicidade também tem lugar no mundo.

Frequentemente me deparas com a virtual corrida ante a janela aberta do oitavo andar de um prédio qualquer com a finalidade de concretizar um mergulho de cabeça em direcção ao pavimento de betão. Mas eu tento, por via da vã racionalização, explicar-te que tal acção soltaria lágrimas demasiado pesadas para o mundo aguentar. Que a pintura no chão resultante não seria obra de arte nenhuma: apenas o escarlate que o acaso se encarregaria de distribuir pelo espaço bidimensional que aparou a minha queda. Que mais tarde viria um homem limpar tudo para mal da sua sorte e que a culpa disso era toda minha! Há demasiada sujidade num inocente salto: há demasiada complicação no simples instantâneo.

Mas não penses que a minha doença resulta da tua doutrina derrotista. Não penses que todos estes teus entraves servem como modi operandi do meu organismo vital: das consequências físicas daquilo que me toca no pensamento. Viver contigo na consistência do tempo, nas decisões diárias e concretas da vida, tornou-me somente aquele que olha para o seu interior com desconfiança; sabendo que ele próprio construiu um inimigo fatal. Por isso, Melancolia, me referi nesta carta a ti e ao outro que a consciência construíste - mas que não sou eu.

Mens agitat molem.

quarta-feira, 26 de março de 2014

O que tem Dublin que a gente não tem

Em Dublin ninguém sente a poesia
Porque em Dublin não há poetas.

Em Dublin há pubs em demasia
Tentando apagar as metas
Do mundo marcado em Inglês.

Nunca fui a Dublin, mas já fui lá.
Vi a cidade lendo - não mais de três -
Contos inacabados do que lá há.

A Gente de Dublin, de Joyce,
Critica não chegando a criticar.
Lendo pouco, porém, mói-se
Quem as palavras não estranhar.

terça-feira, 18 de março de 2014

sábado, 8 de março de 2014

Por seres mulher

Em ti, que tudo sustentas,
Há um sorriso em qualquer
Situação: tu que me tentas,
Assim, só por seres mulher.

Em ti existem mil homens
Em sentimentos: e tu mentes.
À mentira dás as ordens
Que por seres mulher sentes.

Em ti, Força que tudo aguenta,
Há a Vida de todos em gestação:
Mas não a de quem não entender
O tudo que as mulheres são.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Contra o tempo

O que faço e o que falho,
Para a tristeza de alguns,
É tudo o que faço e falho.

O que hei-de fazer,
E isto custa a dizer:
Há já sido sempre feito.

A origem das coisas,
Físicas e metafísicas,
Pelo poder da explicação,
Ou nalguns casos - falta dela,
É compreendida na acção
Entre Deus e o Homem de cela.

Por menos preso que esteja
O Homem quer-se libertar:
Conhecendo o que festeja
Na Física e Filosofia a amar.

E é por isso, tanta vez,
Que falho e falharei:
Ora passar-se-à um mês
E eu nada almejarei.

sábado, 1 de março de 2014

Olhar de um velho

Quanta paixão perdida
Há no olhar de um velho.

Na escura sala escondida
Repousa o revólver vermelho;
Outrora puro e sem lágrimas.

Esta arma secreta à casa
Não devolve às suas vitimas
O que nunca ousou retirar:
A vida que precisa de amar
A morte que nunca se cansa.

Que ritmo tem esta mudança...

Na guerra onde o velho andou
Houve tiros destroçando vidas,
Sonhos e esposas perdidas:
Ódio até que a Morte se cansou.
Mas na guerra onde o jovem
Com olhar cansado permanece
Tem cores onde sonhos dormem:
O amor da vida não desaparece.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Duas quadras

Tu que nada mudas no que te rodeia.
Tu que me matas dando-me vida.
Tu que nunca te encontras perdida:
Tu que tornas cidade esta aldeia.

Eu que te vi no chão sentada
Fixando o meu olhar por ti lento.
Eu que nada vi senão a calçada
Que te elevava naquele momento.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Manifesto Anti-Dantas e por extenso - Lido por Almada Negreiros


Manifesto anti-Dantas e por extenso por José de Alamada-Negreiros, Poeta d’Orpheu, futurista e tudo!

Todos os meus livros devem ser lido pelo menos duas vezes para os muito inteligentes e daqui para baixo é sempre a dobrar.

Basta pum basta!!!
Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d’indigentes, d’indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir a baixo de zero.
Abaixo a geração!
Morra o Dantas, morra! Pim!
Uma geração com um Dantas a cavalo é um burro impotente!
Uma geração com um Dantas à proa é uma canoa em seco!
O Dantas é um cigano!
O Dantas é meio cigano!
O Dantas saberá gramática, saberá sintaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias pra cardeais, saberá tudo menos escrever que é a única coisa que ele faz!
O Dantas pesca tanto de poesia que até faz sonetos com ligas de duquesas!
O Dantas é um habilidoso!
O Dantas veste-se mal!
O Dantas usa ceroulas de malha!
O Dantas especula e inocula os concubinos!
O Dantas é Dantas!
O Dantas é Júlio!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas fez uma soror Mariana que tanto o podia ser como a soror Inês ou a Inês de Castro, ou a Leonor Teles, ou o Mestre d’Avis, ou a Dona Constança, ou a Nau Catrineta, ou a Maria Rapaz!
E o Dantas teve claque! E o Dantas teve palmas! E o Dantas agradeceu!
O Dantas é um ciganão!
Não é preciso ir pró Rossio pra se ser pantomineiro, basta ser-se pantomineiro!
Não é preciso disfarçar-se pra se ser salteador, basta escrever como o Dantas! Basta não ter escrúpulos nem morais, nem artísticos, nem humanos! Basta andar com as modas, com as políticas e com as opiniões! Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicado, e usar coco e olhos meigos! Basta ser Judas! Basta ser Dantas!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas nasceu para provar que nem todos os que escrevem sabem escrever!
O Dantas é um autómato que deita pra fora o que a gente já sabe o que vai sair… Mas é preciso deitar dinheiro!
O Dantas é um soneto dele-próprio!
O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e em talento é pim-pam-pum.
O Dantas nu é horroroso!
O Dantas cheira mal da boca!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas é o escárnio da consciência!
Se o Dantas é português eu quero ser espanhol!
O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa!
O Dantas é a meta da decadência mental!
E ainda há quem não core quando diz admirar o Dantas!
E ainda há quem lhe estenda a mão!
E quem lhe lave a roupa!
E quem tenha dó do Dantas!
E ainda há quem duvide de que o Dantas não vale nada, e que não sabe nada, e que não é inteligente, nem decente, nem zero!

Vocês não sabem quem é a soror Mariana do Dantas? Eu vou-lhes contar:

A princípio, por cartazes, entrevistas e outras preparações com as quais nada temos que ver, pensei tratar-se de soror Mariana Alcoforado a pseudo autora daquelas cartas francesas que dois ilustres senhores desta terra não descansaram enquanto não estragaram pra português, quando subiu o pano também não fui capaz de distinguir porque era noite muito escura e só depois de meio acto é que descobri que era de madrugada porque o bispo de Beja disse que tinha estado à espera do nascer do Sol!
A Mariana vem descendo uma escada estreitíssima mas não vem só, traz também o Chamilly que eu não cheguei a ver, ouvindo apenas uma voz muito conhecida aqui na Brasileira do Chiado. Pouco depois o bispo de Beja é que me disse que ele trazia calções vermelhos.
A Mariana e o Chamilly estão sozinhos em cena, e às escuras, dando a entender perfeitamente que fizeram indecências no quarto. Depois o Chamilly, completamente satisfeito, despede-se e salta pela janela com grande mágoa da freira lacrimosa. E ainda hoje os turistas têm ocasião de observar as grades arrombadas da janela do quinto andar do Convento da Conceição de Beja na Rua do Touro, por onde se diz que fugiu o célebre capitão de cavalos em Paris e dentista em Lisboa.
A Mariana que é histérica começa a chorar desatinadamente nos braços da sua confidente e excelente pau de cabeleira soror Inês.
Vêm descendo pla dita estreitíssima escada, várias Marianas, todas iguais e de candeias acesas, menos uma que usa óculos e bengala e ainda toda curvada prá frente o que quer dizer que é abadessa.
E seria até uma excelente personificação das bruxas de Goya se quando falasse não tivesse aquela voz tão fresca e maviosa da Tia Felicidade da vizinha do lado. E reparando nos dois vultos interroga espaçadamente com cadência, austeridade e imensa falta de corda… Quem está aí?… E de candeias apagadas?
- Foi o vento, dizem as pobres inocentes varadas de terror… E a abadessa que só é velha nos óculos, na bengala e em andar curvada prá frente manda tocar a sineta que é um dó d’alma o ouvi-la assim tão debilitada. Vão todas pró coro, mas eis que, de repente, batem no portão e sem se anunciar nem limpar-se da poeira, sobe a escada e entra plo salão um bispo de Beja que quando era novo fez brejeirices com a menina do chocolate.
Agora completamente emendado revela à abadessa que sabe por cartas que há homens que vão às mulheres do convento e que ainda há pouco vira um de cavalos a saltar pla janela. A abadessa diz que efectivamente já há tempos que vinha dando pela falta de galinhas e tão inocentinha, coitada, que naqueles oitenta anos ainda não teve tempo pra descobrir a razão da humanidade estar dividida em homens e mulheres. Depois de sérios embaraços do bispo é que ela deu com o atrevimento e mandou chamar as duas freiras de há pouco com as candeias apagadas. Nesta altura esta peça policial toma uma pedaço d’interesse porque o bispo ora parece um polícia da investigação disfarçado em bispo, ora um bispo com a falta de delicadeza de um polícia d’investigação, e tão perspicaz que descobre em menos de meio minuto o que o povo já está farto de saber – que a Mariana dormiu com o Noel. O pior é que a Mariana foi à serra com as indiscrições do bispo e desata a berrar, a berrar como quem se estava marimbando pra tudo aquilo. Esteve mesmo muito perto de se estrear com um par de murros na coroa do bispo no que se mostrou de um atrevimento, de uma insolência e de uma decisão refilona que excedeu todas as expectativas.
Ouve-se uma corneta tocar uma marcha de clarins e Mariana sentindo nas patas dos cavalos toda a alma do seu preferido foi qual pardalito engaiolado a correr até às grades da janela gritar desalmadamente plo seu Noel. Grita, assobia e rodopia e pia e rasga-se e magoa-se e cai de costas com um acidente, do que já previamente tinha avisado o público e o pano também cai e o espectador também cai da paciência abaixo e desata numa destas pateadas tão enormes e tão monumentais que todos os jornais de Lisboa no dia seguinte foram unânimes naquele êxito teatral do Dantas.
A única consolação que os espectadores decentes tiveram foi a certeza de que aquilo não era a soror Mariana Alcoforado mas sim uma merdariana-aldantascufurado que tinha cheliques e exageros sexuais.

Continue o senhor Dantas a escrever assim que há-de ganhar muito com o Alcufurado e há-de ver que ainda apanha uma estátua de prata por um ourives do Porto, e uma exposição das maquetes pró seu monumento erecto por subscrição nacional do “Século” a favor dos feridos da guerra, e a Praça de Camões mudada em Praça Dr. Júlio Dantas, e com festas da cidade plos aniversários, e sabonetes em conta “Júlio Dantas” e pasta Dantas prós dentes, e graxa Dantas prás botas e Niveína Dantas, e comprimidos Dantas, e autoclismos Dantas e Dantas, Dantas, Dantas, Dantas… E limonadas Dantas- Magnésia.
E fique sabendo o Dantas que se um dia houver justiça em Portugal todo o mundo saberá que o autor de Os Lusíadas é o Dantas que num rasgo memorável de modéstia só consentiu a glória do seu pseudónimo Camões.
E fique sabendo o Dantas que se todos fossem como eu, haveria tais munições de manguitos que levariam dois séculos a gastar.
Mas julgais que nisto se resume a literatura portuguesa? Não Mil vezes não!
Temos, além disto o Chianca que já fez rimas prá Aljubarrota que deixou de ser a derrota dos Castelhanos pra ser a derrota do Chianca.
E as pinoquices de Vasco Mendonça Alves passadas no tempo da avózinha! E as infelicidades de Ramada Curto! E o talento insólito de Urbano Rodrigues! E as gaitadas do Brun! E as traduções só pra homem do ilustríssimos excelentíssimo senhor Mello Barreto! Embaixador de Portugal em Madrid. E o frei Matta Nunes Moxo! E a Inês Sifilítica do Faustino! E as imbecelidades de Sousa Costa! E mais pedantices do Dantas! E Alberto Sousa, o Dantas do desenho! E os jornalistas do Século e da Capital e do Notícias e do Paiz e do Dia e da Nação e da República e da Lucta e de todos, todos os jornais! E os actores de todos os teatros! E todos os pintores das Belas-Artes e todos os artistas de Portugal que eu não gosto. E os da Águia do Porto e os palermas de Coimbra! E a estupidez do Oldemiro César e o Dr. José de Figueiredo Amante do Museu e ah oh os Sousa Pintos hu hi e os burros de Cacilhas e os menos do Alfredo Guisado! E o raquítico Albino Forjaz de Sampaio, crítico da Lucta a quem Fialho com imensa piada intrujou de que tinha talento! E todos os que são políticos e artistas! E as exposições anuais das Belas-Arte(s)! E todas as maquetas do Marquês de Pombal! E as de Camões em Paris; e os Vaz, os Estrela, os Lacerda, os Lucena, os Rosa, os Costa, os Almeida, os Camacho, os Cunha, os Carneiro, os Barros, os Silva, os Gomes, os velhos, os idiotas, os arranjistas, os impotentes, os celerados, os vendidos, os imbecis, os párias, os ascetas, os Lopes, os Peixotos, os Motta, os Godinho, os Teixeira, os Câmara, os diabo que os leve, os Constantino, os Tertuliano, os Grave, os Mântua, os Bahia, os Mendonça, os Brazão, os Matos, os Alves, os Albuquerques, os Sousas e todos os Dantas que houver por aí!!!!!!!!!
E as convicções urgentes do homem Cristo Pai e as convicções catitas do homem Cristo Filho!…
E os concertos do Blanch! E as estátuas ao leme, ao Eça e ao despertar e a tudo! E tudo o que seja arte em Portugal! E tudo! Tudo por causa do Dantas!
Morra o Dantas, morra! Pim!
Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação do país mas atrasado da Europa e de todo o Mundo! O país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia – se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!
Morra o Dantas, morra! Pim!
José de Almada-Negreiros
Poeta d’Orpheu
Futurista e tudo!

Almada






domingo, 16 de fevereiro de 2014

A génese do amor

A GÉNESE DO AMOR

[ALMADA NEGREIROS] -- Há tempo demais procuro, mestre, as respostas que a juventude não me pode dar. Note que em tempos de tristeza há quem vá ao encontro dele. Pelo contrário, quando a fortuna é alcançada, passa a um estado metafísico secundário, despromovido pelos bons acontecimentos.
[FERNANDO PESSOA] -- Nunca cismei em demasia nesse particular sentimento - se é sentimento no seu todo. A experiência condiciona a sua origem, decerto sei. A experiência, na verdade, condiciona a origem de tudo - o que significa não podermos promover o pensamento metafísico dessa estranha forma de ver os nossos pares sem que antes o tenhamos experimentado.
[ALMADA] -- Quem nunca o experimentou...
[PESSOA] -- Eu acho nunca o ter experimentado, assim como acho nunca ter experimentado a poesia, sendo poeta. Sendo pessoa, de nome e de ser, poderei vê-lo em mim todos os dias, nas coisas que penso enquanto escrevo sobre a aquela guerra da Pérsia ou aquela que trespassa o menino de sua mãe: as Guerras são amor. Só no contraste se vê a verdadeira natureza do status quo.
[ALMADA] -- Só com ódio se sente a necessidade do amor?...
[PESSOA] -- Um homem só ama verdadeiramente uma mulher se nalgum momento da vida entre ambos houve ódio - entre eles ou provocado por terceiros. Só conseguimos ver a luz das estrelas na escuridão da noite. Por isso quem ama odeia numa relação recíproca entre o indivíduo e o mundo. 
[ALMADA] -- Quando olho nos olhos de uma mulher bela tremo duas vezes: uma por ela ser bela e outra por eu ser feio.
[PESSOA] -- Quando o sol nasce não é para todos: esquecem-se que na face oposta da Terra iluminada reina a escuridão da noite. Mas esquecem-se também que o ciclo só se completa quando se invertem as faces. O sol permanece no mesmo sítio.
[ALMADA] -- Fico espantado com a polivalência do mestre em áreas tão heterogéneas, como a ciência e a literatura.
[PESSOA] -- Também tu já te esclareceste! A tua arte é o amor mais belo que podes dar ao mundo. A minha arte, vês agora que é abrangente, é a génese do amor.

A poesia e o sistema solar amam-se mais intensamente que Pedro e Inês.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O mundo e as suas imundices

Está a acontecer
Perpetuamente...
Consigo agora ver,
Finalmente...

Que ânsia! Que pena...
Agora sei apenas
Que o tempo passado
É o nó entrelaçado
Do acontecimento
De qualquer momento.

O Mal de ontem determina
O Bem que há de vir.
Assim se vê a doutrina
Que faz o inocente rir.

Os conflitos entre povos,
Como poços enlameados,
Têm fim nos fundos trabalhados
Por aqueles que eram novos.

A benevolência é água suja
Que se bebe para que o fundo surja.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Grito artístico & cultural

Alguém padroniza as visualizações artísticas das cidades modernas:
A sociedade embeleza continuamente o caminho onde passa,
Esta feita de pessoas sujeitas à submissão de elas próprias;
Este rastejado pela imundice que é atroz ao mundo.

Ir para a frente numa caminhada intermitente é ouvir
O canto da História - que ao ensinar, em boa hora,
Nada mais faz que nova vida que ao Presente não pertence.
Aos antigos gritos lhes é acrescentado o assento perpétuo
No galho frágil das pessoas que fazem o mundo, este
Que é árvore ramificada da evolução social divergente.

MAS GRITEM, ARTISTAS, QUE NINGUÉM VOS OUVE!

Sentir as belas artes, escrevendo, pintando, rastejando na folha que é tela,
Abrindo o cofre capital guardado nos manuscritos antigos,
Nada mais é que a vida em sabor magnífico: de morango
E framboesa, do mais refinado cacau africano ou café paraguaio.
Começando na purificação intelectual, este gosto experimentado
pelo raciocínio, não se perdendo, não é o gosto de a quem se dirige.

Pela frente enquadram-se os que vêm, que aos que passam
Ninguém diz nada, nada, nada. Pelo meio, enquanto sociedade,
Pode-se crescer em muita coisa, em meios artísticos liberais.
Mas o sonho, esse, por ser de todos, não morre sozinho em alguém.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Soneto das loiras e morenas

Vi uma moça andando
Na rua, sempre tentando
Olhar o gélido frenesim
Da avenida sem fim.

Outra que sentava pelo
Banco do jardim central
Mostrava no regaço belo
Uma compostura desigual.

A que vai, de doirados
E soltos cabelos, vê o
Mundo incerto por ela indo.

A que senta na natureza,
De escuro e profundo capilar,
Observa o mundo por ela passar.