sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

O dia que sucede o dia de Natal II

O Natal passou ontem
E hoje é dia de trabalho.
Com as prendas contem
Mais tristeza no baralho.

Minto: não há prendas.
A vida é o nosso terror.
Há somente as lendas
Muito cheias de amor.

Ao terceiro dia acaba
Tudo o que começou.
As promessas são nada,
Mas isso nem eu sou.

Fiquem felizes no Natal:
Não há mesas sem comer
Pois todos têm a tal
Ganância por receber.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Este belo Natal

Numa gélida e natalícia rua, sozinho, um menino procura uma específica loja por lá aberta. Entra numa com guloseimas de montra convidativas e brinquedos coloridos ao fundo sem sequer reparar que passou da rua fria à loja de confortável temperatura. Esse desejo extra-físico e corporal que cegamente o fez ver os artigos que o Natal fizera chegar àquele estabelecimento, que denota já sobre as suas paredes e demais estruturas idade pesada, explicava-se pela idade tenra e juvenil das suas pernas, que o apressaram até à prateleira mais afastada. Automático, o rapazito alcança uma caixa de madeira antiga com alguma inconveniente poeira - pelo sopro forte extinta - e com dois bonecos nela desenhados: um pai-natal acompanhado por um pequeno e prestável gnomo. Sem dúvida que o invólucro que segurava fazia parte do século precedente ao do nascimento do nosso protagonista, mas, com mais certeza ainda, ele reconhecia o grafismo: de onde? não sabia. Mas conhecia-o e jurava-o mentalmente. O que teria provocado aquele instinto que o fez alcançar a inexplicável e desejada caixa de madeira? Não sabia, mas tinha a certeza que algo de mágico, que só a alegria e a unicidade do Natal conseguiria explicar, se encontrava no seu interior.

Num improvável dia sem clientes, o dono da loja, sentado em parte sobre uma cadeira e em parte sobre a idade, sossegadamente lia um livro muito antigo. Naquela época era costume a loja ter clientela de sobra, sobretudo de pessoas já antigas como o livro e o dono, que procuravam as coisas que as faziam sonhar nos Natais longínquos das suas infâncias. Com estranheza, quem entra é um menino, que sem ver nada do exposto - excepto, com um olhar vago, os chocolates à entrada - se penetra rapidamente na parte mais afastada da loja, agarrando a dita caixa de madeira de indecifrável conteúdo. Surpreso com este acontecimento inesperado, diz o velho dono:

- Raios te partam, Joãozinho, o que vieste aqui fazer com este frio? A tua mãe não pode ir às compras sossegada que a desobedeces logo e sais de casa!
- Desculpa lá avô, vim só buscar os comandos da consola. Podes vender a caixa, eu é que já não sabia do raio dos comandos. Só agora é que me lembrei que era aqui que os guardava.
- Muito bem, vê lá se tens juízo a voltar para casa. Como está a ser o Natal, já agora?
- Bom, farto-me de jogar Grand Theft Auto 5™ e Watch Dogs™ na Playstation 4™ da Sony®.
- Está bem, vá. Juizinho.
- Adeusinho, avô. Feliz Natal.
- Dá um beijinho à tua mãe.

E a caixa, que simboliza tão claramente o espírito de Natal que aproxima distantes gerações, foi vendida a um transeunte daquela rua que a conseguiu por dois euros e meio somente depois de regatear um pouco.

Feliz Natal a todos os dois leitores do Vou Escrever Um Blogue, e que 2015 seja melhor do que a maioria dos anos do século dezassete.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Poesia

Meu amor: como o tempo de saudade
Escorre lacrimosamente por meu rosto.

Nem a prata da casa ou o ouro da igreja,
Nem o amo sorridente ou a serviçal
Mulher-a-dias que aqui emprego,
Nem eles, nem nada, nem ninguém,
Te repõem em minha vida que era nossa.

Como a bravura do campo ou a ternura
Das mães que lá habitam com suas famílias,
Também tu, para a natureza vinda, da fama
Retornada, me dás a chama de mil valentes
Gregos e de um milhão de dons Quixotescos.

Acaba-me a poesia quando no pensamento
Me acabas e não voltas senão amanhã.
Mas não te extingues e isso é bom.
Nunca te extingues que és fogo
E o que me faz escrever.
Mas não sorrio.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Carolina

O segredo dactilografado no vento
Vem breve pela oração do amor.
Não o desvendas que ele vem lento:
Espera e não deixes chegar a dor.

Alguém me disse que há vida
Naquilo que és; naquilo que fazes
Nasce a dúvida pelo tempo trazida.
A incerteza sempre cala os audazes.

Viste o mundo que não era nosso,
Abriste o tempo e entrelaçaste-o;
És abrupta quando, de modo grosso,

Não deixas viver os outros em ritmo.
Não vivas opaca como a neblina
E vê quem pelo espanto te encanta.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Talvez se pudéssemos permanecer neste estado inerte enquanto o tempo não passa

O que se há-de fazer quando ninguém aparece no espaço de arte que abriu na noite anterior? Porventura o desconhecimento do artista configure o deserto local, ou a ambiguidade da arte que o preenche, ou qualquer outra coisa que se pudesse confiar às descrições inerentes ao acontecimento.

Não se fará nada porque tudo vai passar enquanto ninguém passa; e a essa conclusão há já o artista chegado numa instância ante-visionária. Quando ele foi para a frente com o projecto já tinha o conhecimento que aqueles metros quadrados seriam um caixote do lixo de dinheiro e que quem a infelicidade de os visitar tivesse seria considerado um cabeça-oca da cultura. Ele não tinha quem o aconselhasse do que seria melhor e sozinho percorreu o caminho que tinha a percorrer, não fosse incomodar alguém desnecessariamente.

Mas a consequência - pelo artista designada "reacção" à sua arte - será a de não acabarem naquela cidade os movimentos artistas independentes, sem -ismos ou enfeites. Ele é arte e sabe-o.
Um dia morrerá e todos abrirão os olhos. Talvez se pudéssemos permanecer neste estado inerte enquanto o tempo não passa, ninguém sairia ferido, tal efeito devastador da necessidade de haver movimento de qualquer espécie.