domingo, 16 de fevereiro de 2014

A génese do amor

A GÉNESE DO AMOR

[ALMADA NEGREIROS] -- Há tempo demais procuro, mestre, as respostas que a juventude não me pode dar. Note que em tempos de tristeza há quem vá ao encontro dele. Pelo contrário, quando a fortuna é alcançada, passa a um estado metafísico secundário, despromovido pelos bons acontecimentos.
[FERNANDO PESSOA] -- Nunca cismei em demasia nesse particular sentimento - se é sentimento no seu todo. A experiência condiciona a sua origem, decerto sei. A experiência, na verdade, condiciona a origem de tudo - o que significa não podermos promover o pensamento metafísico dessa estranha forma de ver os nossos pares sem que antes o tenhamos experimentado.
[ALMADA] -- Quem nunca o experimentou...
[PESSOA] -- Eu acho nunca o ter experimentado, assim como acho nunca ter experimentado a poesia, sendo poeta. Sendo pessoa, de nome e de ser, poderei vê-lo em mim todos os dias, nas coisas que penso enquanto escrevo sobre a aquela guerra da Pérsia ou aquela que trespassa o menino de sua mãe: as Guerras são amor. Só no contraste se vê a verdadeira natureza do status quo.
[ALMADA] -- Só com ódio se sente a necessidade do amor?...
[PESSOA] -- Um homem só ama verdadeiramente uma mulher se nalgum momento da vida entre ambos houve ódio - entre eles ou provocado por terceiros. Só conseguimos ver a luz das estrelas na escuridão da noite. Por isso quem ama odeia numa relação recíproca entre o indivíduo e o mundo. 
[ALMADA] -- Quando olho nos olhos de uma mulher bela tremo duas vezes: uma por ela ser bela e outra por eu ser feio.
[PESSOA] -- Quando o sol nasce não é para todos: esquecem-se que na face oposta da Terra iluminada reina a escuridão da noite. Mas esquecem-se também que o ciclo só se completa quando se invertem as faces. O sol permanece no mesmo sítio.
[ALMADA] -- Fico espantado com a polivalência do mestre em áreas tão heterogéneas, como a ciência e a literatura.
[PESSOA] -- Também tu já te esclareceste! A tua arte é o amor mais belo que podes dar ao mundo. A minha arte, vês agora que é abrangente, é a génese do amor.

A poesia e o sistema solar amam-se mais intensamente que Pedro e Inês.

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