Quantas vezes me vi já nas ruas luxuosas de Lisboa dos finais do século XIX ou inícios do XX a passear entre a fina e expressiva sociedade portuguesa de artistas românticos e modernistas. Nos sonhos posso ser a carne e alma de um viajante futuro, com premissas elevadas de conhecimentos póstumos a reviver aquilo que os livros dos quais nunca ninguém ouviu falar nos contam com detalhes esplêndidos.
Vou narrar um sonho particular que generalizou a minha ideia da sociedade daquele tempo, em que Fernando Pessoa era um desconhecido popular e a poesia e arte plástica passeavam nas ruas de mãos dadas com o pensamento sorridente de um jovem poeta d'Orpheu, futurista e tudo, chamado José de Almada Negreiros, que é personagem principal num conto fictício que toma apenas o sonho como real.
Havia passado quatro anos e três meses desde que Portugal mudara o seu sistema político de reis para presidentes, de nobres para ricos, de clero para encalhados. Sabia disto porque segurava intacta na mão a primeira tiragem da revista Orpheu, editada por ilustres personalidades do início do século em que me encontrava, estudados impiedosamente no século em que dormia, e cujos nomes figuravam na primeira página. Também notei através de uma placa junto ao Arco Triunfal que o espaço do meu sonho era a Praça do Comércio, só chamada assim pelos incultos de alma que no sangue não têm vontade alguma de sonhar e de descobrir sorrisos nas pessoas transeuntes; talvez por isso a plaqueta não referisse que o sítio onde aquele grande Arco convida a Rua Augusta a começar se chama até hoje, verdadeiramente, Terreiro do Paço.
Era Janeiro e estava uma noite fria. Como sabia que estava a sonhar tornei-me fantasma: flutuante, invisível, imperceptível, incapaz de alterar o rumo lógico dos acontecimentos da minha imaginação naquele breu de sono. Senti-me como um narrador heterodiegético e observador; não controlava nada porque não era assim o meu desejo; não sabia nada porque se não estivesse a dormir nada saberia também. Porém, devido à frescura invernal, podia ver um indivíduo magro, baixo, de cabelo curto e estranho, cara ainda mais estranha e corpo desproporcional a expelir ar quente, ofegantemente, enquanto corria por entre as arcadas meio iluminadas à esquerda do Arco. Fiz-me querer, sem certeza nenhuma, mas porque o sonho era meu e me parecia alguém conhecido, que se tratava do Mestre Almada Negreiros. No entanto, qual mestre era ele naquela altura, com vinte e um anos, jovem feio e sem sucesso, desencontrado com a vida que não lhe era precisa, utilizada apenas para ter contacto com outros artistas no Martinho da Aracada que lhe tinha predestinado a correria.
Assim sendo, entrei nesse espaço onde a cultura se respira e onde nunca estive acordado, razão pela qual o meu sonho tratou de inventar uma espelunca qualquer, que se parecesse com o século XIX, apesar de estar no XX e de saber que o sonho estava a perder detalhe, e com isso veracidade. O jovem Almada entrou calmamente - em contraste com a pressa que trazia - e na mesa onde se reuniam os artistas com desgraças comuns apenas encontrou um gordo, que eu presumi ser Mário de Sá Carneiro, porque nunca na vida vi qualquer representação do seu físico e para que tudo batesse certo e o sonho fosse do meu agrado, assim se continuou a história. Almada chegou junto dele e lamentou os quarenta e cinco minutos que trazia atrasados - ou três quartos de hora, como ele disse, por pensar ser artista geométrico e remeter para proporções do círculo horário - e ainda mais lamentou quando percebeu que Fernando Pessoa estava ainda mais atrasado. Quando percebi que se tratava de uma reunião para elaborar a segunda tiragem da revista Orpheu, porque estava a decorrer o ano de mil novecentos e quinze a a primeira edição estava na minha posse, concluí que Pessoa havia feito jus à sua poesia, descartando as interacções sociais, chegando propositadamente atrasado, não querendo enfim saber do passar das horas, sinal da inevitabilidade fatal da vida.
Os dois poetas durante horas conversaram acerca de diversas temáticas: ora Eça de Queirós era um maricas com detalhes excessivos, ora Júlio Dantas possuía um odor oral desagradável; ora a poesia romântica era cocó, ora o modernismo é que era giro, bonito e agradável. Com isto, rapidamente se fizeram oito horas da noite e finalmente entrou pela porta imaginada o épico, o agradavelmente irreverente, sublime, o impossivelmente adjectivado, Fernando António Nogueira Pessoa. Assim que entrou, acenou alegremente à dupla de parvos sentados há duas horas naqueles lugares e mandou vir um copo de água pé. Como Pessoa me pertencia, naquele momento, por ser imagem do meu pensamento, já estava a prever o futuro, embora a minha característica não participante e observador: em breves momentos, julgava eu, Fernando começaria um discurso lírico e belo, enchendo o espírito poético daqueles dois, começando por isso a chover ideias glamurosas para a Orpheu 2, elevando o espírito artístico do espaço semi preenchido pela sociedade culta.
Pelo contrário. Pessoa sentou-se e não utilizou a boca senão para beber. Os outros dois falavam com ele sobre ideias, sobre possibilidades de expressão, acerca até da porcaria que se desenhava nas suas vidas. Fernando Pessoa apenas respondia palavras mínimas, palavras de quem pelo menos toma a mínima atenção aos problemas que a ele parecem não pertencer, quando sabemos que na verdade aquela tripla tinha exactamente os mesmos problemas, que doem e não se curam, que entram e se saírem não saem iguais. Palavras curtas que escondiam dores intensas naquele ser humano que ninguém compreende por isso.
Então, uma revolta sorridente apoderou-se de mim, não fiquei desapontado, nem desiludido. Com o sonho que tivera, apenas me esclareci. Vi Fernando Pessoa como realmente é: humano, demasiadamente humano. Vi um jovem que não sabia se era poeta ou pintor, degredado na sua própria vida, que viu em Fernando Pessoa a verdadeira iluminação artística. Vi um Sá Carneiro ausente, alguém que não conhecia mas que se desprendeu da sua própria vida um ano e três meses depois; não aguentou o fluxo e viu na morte o conforto desejado por Pessoa e Almada.
Depois acordei, era de manhã e deixei-me ficar deitado na eventualidade do sono me apanhar novamente desprevenido.