sábado, 7 de novembro de 2020

Como é bom ter um carro

Como é bom ter um carro!
Que regalo passear sozinho,
Partir agora para uma cidade
Diferente da atual,
Só porque posso
Pegar eficazmente no carro
E seguir para outras bandas.

Ai, que sabor tem o deslocamento!
A locomoção mecanizada, movida
A combustível, que me permite mudar.
Quero ver mais sítios à distância
De um motor a combustão,
Quero conhecer as planícies das
Estradas que as ligam, das redes viárias,
Das vias de aceleração de alcatrão e asfalto.
 
À noite o mesmo carro traz-me 
De volta para o meu sítio de estar.
E eu vou dormir satisfeito por ter um carro
Que me faz sorrir mais que algum livro
Faria com as suas descrições faustosas.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

A descer no decadentismo

Passo bem horas na mente a fazer de conta que crio, faço, estudo, produzo.
Mas traduzindo isso em ações, perde-se tudo.
Que vontade tenho, que arte faço, que obras extensas eu pus no mundo!
Mas é só no pensamento.

Quando for velho - muito velho - e morrer, não vão encontrar nada escondido.
Porque o consciente em mim cessou.
As ligações elétricas que criavam sonetos belos, definindo paixões, concluíram-se.
O dia da minha morte será o dia em que morrerei.
 
Eu leio poetas do século dezanove e vinte. Estudo matemática de Newton a Fubini.
Uso paradigmas de software modernos.
Tudo graças a quem não deixou no pensamento o que podia deixar escrito.
Mas que uso teria a minha tinta inútil?

Olho para o que escrevo como quem olha para o próximo livro de um autor conhecido.
A expectativa é elevada; o estilo conhecido.
Mas que expectativa teriam de mim, se não lhes dei possibilidade de a terem?
Que estilo esperariam, se não foi ainda inventado?
 
Perco-me no tempo. O infinito que guarde o meu pensamento.
O lápis violento que rompa o papel.
Que eu sonho no sonhar e pesa-me o escrever.

sábado, 31 de outubro de 2020

Crises de depressão e alcoolismo

Quando a vida está louca
E virada do avesso -
Passando ao lado -
Bebo - bebo bem e passa.
 
Refugio-me no álcool
Porque ele é meu amigo.
Não é um problema. Digo;
Afirmo e tenho a certeza.

Faz-me ver com clareza
Que isto de estar vivo
Só pode ter uma conclusão
Que é a morte que há-de vir.

Estarmos vivos e não beber -
Mas beber a preceito,
Que é uma ciência -
É como se estivéssemos mortos.

Como se caísse sem pudor 
O mais rico homem na terra
Aos meus pés, chorando,
Pedindo um copo de aguardente.
 
A bebida não interessa.
Faz tudo bem.
A vida não interessa
Porque vamos todos morrer.

(Mas com que sentido?
Não hemos nós de conseguir
Melhorar o mundo
Enquanto cá estamos?

De chorar com a emoção
De ter filhos, vê-los chorar,
Crescer e um dia eles
Terem filhos também?)
 
Não interessa. Desde que tenha
O copo cheio daquilo
Que me faça esquecer.
Estou bem. Estou feliz.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Ainda a arquitetura

Pousando a caneta,
Perguntou o mestre à noite:
 
"Como chegámos aqui,
Que ainda o sol se pôs 
Atrás daqueles sobreiros
No início destes versos?"
 
Um poema leva horas.

"Para ficar bem escrito?
Ou seja, que não escape 
Um sentimento distante?
Uma razão de rima?"

O que tu concluis.

"Amando a pessoa certa?
Ou talvez possível?
Não obstante confundirem-se
Em definição uma com a outra."

A pessoa possível faz o poema possível.

Concluiu sozinho o mestre,
Com sensatez alcoólica,
Que não era mestre
Nem sensato
Nem alcoólico.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Crescer e morrer

Crescer com doutrina.
Com ideais de conformidade ética e moral.
Crescer - crescer bem e corretamente.
E voltar a crescer uma vez mais
Num embrulho de certezas.
Como foi determinado
E não podia deixar de ser.

No meio. Estar no meio é crescer.
Amar o suficiente para não causar choque
Ou intriga que invalide o meado crescimento.
Olhar para a natureza, se for preciso.
Ou a linha de vista de uma cidade grande
Que nos enche de urbanidade.
Coexistir pacificamente.
Como não podia deixar de ser.

E os velhos, que já cresceram?
Pois que morram com dignidade
Porque é o que lhes falta
Do crescimento com doutrina.
Aceite-se o predeterminado.
Não há alternativa - tem de acontecer.
Se houvesse alternativa
Como poderia ser?

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Quando me escreves

Quando me escreves
Do teu esconderijo:

Soltam-se os fogos,
Há festas de homenagem,
Tambores triunfantes,
A força aérea solta os caças,
Comemora-se a vida,
Alegrias bastantes,
Aparece Vénus despida
E todo o mundo é a esperança
Do sorriso de uma criança.

Quando me escreves
E parece poesia:

Vêm-me as lágrimas aos olhos,
Tamanha é a emoção,
Raios tremulam o céu,
Deus acorda só para mim,
As guerras chegam ao fim,
Os passarinhos cantam
E todo o mundo é perfeito,
Extingue-se qualquer defeito.

Quando me escreves
Sem conclusão:

Raia o sol na eterna manhã,
Enche-se a cidade de luz e de cor,
A realidade é feita de amor,
Ouvem-se sonetos nas janelas,
Os namorados são para sempre,
As ruas são bailes de donzelas,
E todo o mundo é beleza solta
Quando eu te escrevo de volta.

sábado, 21 de março de 2020

Fonte de amor independente

Tenho uma fonte de amor
Que impõe uma paixão
Constante e contínua
No meu coração.

Todo o amor que entra
É igual ao que sai.
É um ramo que liga
À tensão que lá cai.

Se medir a potência
Deste circuito fechado,
Dissipa-se a resistência
De ficar ao teu lado.

A onda que me apaixona
É uma sinusoide ideal,
Com amplitude máxima
Medida ao terminal.

E quando vejo uma luz
A iluminar-te o olhar,
Impõe-se uma corrente
Que faz o tempo parar.