sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Ex-namorados e contas do Netflix: um problema dos nossos tempos

 
O fim de uma relação envolve sempre um certo sofrimento explícito: uma sensação de impotência para enfrentar os mais simples problemas do dia a dia, sentimo-nos fracos e não queremos sair da cama de manhã para cumprir as nossas obrigações, as nossas comidas favoritas perdem o sabor, olhar para as silhuetas enquanto passeamos nas ruas da cidade faz-nos sempre lembrar da nossa antiga cara metade e aquele filme romântico com o ator famoso já não é o que era.

Precisamente para nos distrair da nossa vida miserável, pensamos que talvez um filme ligeiro ou uma série entretida nos anime o espírito. Afinal de contas subscrevemos ao Netflix e é inegável a qualidade tanto da imagem como do conteúdo desse agregador multimédia. Porém, ao abrirmos a página web do Netflix deparamo-nos com mais um sinal da nossa antiga relação, outrora perfeita, mas que falhou e nos consome por dentro tal inferno sem dar tréguas: a conta de quem era o nosso mais que tudo, a razão de vivermos, a mais significativa parte de nós ainda está presente no refúgio audiovisual que procurávamos para descansar um pouco a alma.

De um momento para o outro esquecemos Stranger Things ou House of Cards ou Narcos e o nosso pensamento deriva uma vez mais para o precipício do romance que pereceu. Ali está a nossa conta que agrega a qualidade de entretenimento que nos faz sonhar e querer viver intensamente junto à conta que agrega o nosso sofrimento flagelado por quem já não nos quer. Fica complicado conciliar tantos sinais que ficaram de um passado mais confortável e em que tudo era jardins de flores coloridas com a sólida dor solitária do presente pântano que fede.

Cegamente enraivecidos, decidimos criar uma outra conta falsa com o intuito de fazer parecer que já seguimos em frente e temos uma nova pessoa na nossa vida. Desse modo, quem anteriormente partilhou aventuras e vivências connosco, irá sentir-se muito mal ao fazer login no Netflix, vendo que a nova conta que lá se encontra é claramente - sem margem para dúvidas - uma nova etapa no nosso mundo romântico e que eles são coisa do passado. Já que estamos bastante enraivecidos escolhemos, no caso dos homens, o nome sugestivo "Sara Sampaio", ou, no caso das mulheres, "José Cid" (porque é ele o apogeu do simbolismo romantico-sexual para as mulheres). Totalmente seria possível. As antigas cara-metade vão cair certamente.

Pouco tempo depois verificamos o quanto ridículo fomos. Notamos que chegámos ao ponto de criar artimanhas no Netflix para iludir quem nos deu tudo. Facetas desprovidas de lógica, tal é o estado decadente do nosso espírito. Pensamos que nos falta alguém - aquela pessoa antiga. Lentamente descemos ao abismo. Ficamos deprimidos.

Onde assenta a reflexão é que fazemos coisas ridículas a toda a hora enquanto estamos apaixonados. Vemos Netflix juntos e trocamos carícias verbais com entoação duvidosa, juramos que tudo o que está bem se vai prolongar e pensamos que é bom ser ridículo porque se gosta da outra pessoa e, em bom sinal, estamos a ser ridículos juntos. Quando isso acaba julgamos que passamos a ser ridículos sozinho - o que é mentira. Não é uma praga de contas caídas em desuso num website de filmes e séries que definem o ridículo nem os atos que a tão simples existência dessas contas levaram a cometer.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Ser sozinho

É comum querer ter alguém -
Já que sentir falta é um prazer,
Mas se isso não acontecer
Vou sozinho que vou bem.

Mesmo que haja um azar
Ninguém se vai chatear;
E as matérias de sentimento
Não são mais que pensamento.

Se a vida correr bem
Eu durmo descansado,
Se for o contrário
Mais ninguém fica acordado.

E aquelas manhãs chatas
Que precedem o café
Seriam minhas e só minhas -
E no almoço tinha a fé.

Que morte seria essa
Vida que se levava?
Nem a vida estava acesa
Nem a chama se apagava.

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Quadras de outro mundo

No céu escuro da noite
Esconde-se um planeta
Que guarda os segredos
Que não se podem dizer.

Guarda toda a esperança
Dos corações sozinhos
De quem não se cansa
Quando não há solução.

Esse planeta sem mar
Fica longe das estrelas
E não se pode navegar
Com medo de se perder.

Orbita as memórias
De um sistema estelar
Que é feito de sonhos
Mas tem de se calar.

Tem uma lua brilhante
Mas sem lobos que uivam
E desertos extensos
Que são feitos de razão.

Eu visitei o planeta
Quando lá era verão.
Fiquei de mansinho
Até mudar de estação.

Foi uma visita guiada
E com muito para ver -
Era um planeta bonito
Mas fácil de ofender.

Agora vejo à distância
Com lentes de lembrança
Aquele mito planetário
Que um dia terá vida.